sábado, 28 de abril de 2012

um cruzeiro (quase) sem navio

A ideia foi da esposa do meu pai. Numa tarde em que os visitava, num pequeno apartamento no centro de Porto Alegre, ela disse:

- Que tal a gente comemorar os 80 anos do teu pai num cruzeiro?

Ficar enfiado dias a fio num navio cambaleante não era coisa que me atraísse, mas o velho Garcia ficaria feliz e novidades sempre podem dar boa aventura. Quando cheguei em casa, comentei sobre a possibilidade com a Maira. E se ela, que sempre teve medo de viagens de barco, topou, por que não ir?

O tal Costa Mágica.
Meses foram vividos em função do cruzeiro. Compramos roupas, calçados, as passagens de navio e de avião, que o embarque seria no porto do Rio de Janeiro. Nos divertimos e nos cansamos para irmos bem vestidos no tal Costa Mágica, o transatlântico.

No aeroporto Salgado Filho,
PoA
Num dia de fevereiro, depois de 17 anos, eu e a Maira começamos nossa primeira viagem de avião juntos, a viagem para comemorar os 80 anos do meu pai. No aeroporto, éramos mais sorrisos que qualquer outra coisa.

O voo foi tranquilo e, para mim, entediante. Até que o piloto anunciou que sobrevoávamos a Cidade Maravilhosa. Segundo o L. F. Verissimo, o Quintana disse que o melhor lugar para se viver no Rio eram os túneis, porque neles se podia descansar da paisagem. Que lugar! Que paisagem! Que povo!

Drummond e eu, conversando
em Copacabana.
Depois de guardarmos nossa bagagem num guarda-volumes, perto do meio-dia pegamos um táxi (seguindo todas as recomendações dos amigos) e fomos para a Zona Sul: Botafogo, Copacabana e Ipanema. Às 18:30 teríamos que estar no porto.

O Cristo (de longe).
Por todos os lados, víamos a natureza se misturando à cidade. Acredito serem esses os ingredientes que fazem o carioca. Eles são prédios e morros altos, areia de praia e calçada, futebol, cerveja e bom papo nas paradas de ônibus (em qualquer lugar). E o Cristo Redentor, que não visitamos por falta de tempo, mostrava-se por onde quer que andássemos, mesmo que andássemos bem longe dele.

Nessa altura da viagem (o primeiro dia ainda), já achava que se ela terminasse ali e tivéssemos que voltar para casa, teria valido cada centavo. Mas a viagem continuaria, por isso fomos ao guarda-volumes, pegamos nossa bagagem e às 18:30 cravado chegamos ao porto. 

Na hora do embarque, tudo certo com a Maira. Agora só faltava eu. Mostrei o documento e a moça, do outro lado do balcão, disse que seria impossível eu embarcar com aquele documento, afinal ele estava violável. "Tem outro documento, senhor?". E eu: "Não!" "Então, lamento, mas não será possível o senhor embarcar". "Ô, moça", disse, "eu vim de Porto Alegre. Meu pai está aí dentro e vai comemorar os 80 anos dele nessa viagem. Tu estás me dizendo que eu não vou poder embarcar?" Ela explicou que o pessoal do navio era rigoroso. Minha única possibilidade era voltar a Porto Alegre, fazer o documento novo e embarcar quarta-feira em Punta Del Este. 

Desisti da viagem. E a Maira dizia: "Se tu não fores, não vou também. A moça, vendo tanta indecisão, comunicou: "O embarque é só até as 19 horas". Por fim pedi para a Maira embarcar e me deixar só, ali. Ela aceitou ir se eu prometesse tentar pegar o navio em Punta. Menti: "Tá bom! Agora vai, que já passou da hora".

Fiquei um tempo ainda no porto, me sentindo mal, um relapso. Quando um táxi parou ali perto, me resignei e fui para o Galeão. Eram 20 horas quando comprei a passagem de um avião que decolaria no fim da madrugada. O que fazer senão beber?

A bebida modifica a pessoa. E em grandes quantidades modifica bastante. No balcão de um fast-food, pedi seis tickets de chopp de meio litro. No terceiro, decidira: "Quer saber? Amanhã vou providenciar a porra do documento e na quarta-feira pego a merda desse navio!" Até a hora de embarcar, andei da ala sul à ala norte e da ala norte à ala sul do Galeão umas três vezes, comprei revistas, jornais, conversei com gente em filas e com guardas em portarias e, lá pelas tantas, dormi. Acordei, comprei café (caro) e fui para o embarque.

Segunda de manhã já estava de volta a Porto Alegre. Segunda de manhã já estava no Instituto de Identificação, contando minha história. O responsável dali acreditou na minha verdade e me prometeu: "Paga a taxa, tira a foto e pode vir pegar teu documento amanhã de manhã". Terça de manhã peguei o documento, comprei passagem de ônibus para Punta Del Este e me senti esperançoso.

A mão!
Às 23:30 da terça-feira, embarquei para o Uruguai. No ônibus leito, logo de saída, teve janta e, de manhã, café com sanduíche. A viagem toda teve cobertor, travesseiro e um belo espaço entre uma poltrona e outra. Bem melhor que avião. 

A rodoviária era perto daquela escultura da mão. Pedi informações em espanhol. Descobri que se fala melhor uma língua estrangeira quando se tem necessidade. Em Punta, começou a onda de informações erradas que tanto me atrapalhariam. 
Limusine na frente do Conrad

Pelo que me disseram, peguei à direita, passei o Cassino Conrad e falei com um motorista de ônibus de turismo. Ele, que conhecia o Costa Mágica, disse-me que o navio não chegaria por ali, mas em outro lugar. "Você deveria ter ido à esquerda. Agora, só de táxi". Entrei no Conrad e troquei um dinheiro. 

Até quis pegar um táxi para ir onde o navio deveria chegar, mas não passou nenhum, de modo que fui a pé mesmo. Devagar, pois achava que eram 7 da manhã daquela quarta-feira em que meu pai aniversariava. Só fui descobrir que lá tem uma hora a mais perto das 10. Três quilômetros depois cheguei ao pier. Na Aduana me informaram: "O Costa Mágica chega só ao meio-dia". 
Barcos de pescadores.
Ao fundo, os "pobres".

Pelo meu relógio eram pouco mais de 8 da manhã. E lá fui eu, para lá e para cá, com uma mala de rodinha nas mãos e uma mochila nas costas. Andando por aquela cidade rica e deserta, pelo pier de um lado pobre (com barcos de pescador) e de outro rico (com aqueles iates feios que todos acham bonitos). 

Encontro no pier de Punta.
Punta não tem porto. Então não há onde navio nenhum atracar, só barco pequeno. Para sair do navio, os passageiros, organizados, embarcavam numa espécie de catamarã e seguiam por 20 morosos minutos até o pier. Só encontrei a Maira uns 10 catamarãs depois, às 13:30. Cumpri, assim, a promessa que havia mentido para ela.

Os milionários estão seguros em Punta.
Não há grades nos casarões
A história está (e é) meio longa. Para quem acha que tudo se resolveu aí, lamento: tem mais. Antes de continuar essa tristeza engraçada, posso falar um pouco de Punta. É uma cidade estranha, como qualquer outra. O jornal que comprei ali quase não diz nada de importante; as pessoas que andam na rua são simples, têm algo de decadentes, e vê-se logo que estão na luta pelo ganha-pão; são diferentes das pessoas que não estão lá: os milionários.

Farol que nem esperávamos
encontrar.
Voltando. Quando encontrei a Maira, foi revigorante para o meu cansaço. Além do beijo bom, do cheiro bom que ela trouxe, do sorriso grande, ela também trazia meu cartão de embarque e uma certeza: "Tu vais entrar no navio. Quem me deu este cartão me garantiu". Ora, fiquei tranquilo. Passeamos a cidade inteira (pela segunda vez nesse dia passeei a cidade inteira); tiramos fotos até de sereias, de bandeiras e de casas simples em meio a tanta casa esnobe. No pier mesmo pedi a Maira em casamento, de saudade que estava.

Todo esse passeio, que durou umas quatro horas, foi feito comigo carregando a mala e a mochila. E, embora estivesse feliz por estar próximo de entrar no navio, também estava cansado. Desde domingo na função da viagem. Tinha vontade de entrar na cabine e me deitar um pouco, tomar banho etc. Mas quando entrei no navio e dei o cartão para passar no leitor óptico, o responsável lá por essas coisas (isso é Vítor Ramil), me disse que nada estava certo, que eu deveria ter passado antes na Aduana e pedido permissão para o embarque. Mas quem disse que adiantou dizer que um colega dele havia informado que tudo estava certo? Voltei, com mala e tudo, a terra. Embarque, agora, se eu quisesse, só em Buenos Aires. Era a segunda vez que perdia o mesmo navio.

No meio do azar de estar de volta ao pier e ver o navio partir, tive a sorte de conhecer um senhor que, vendo que não pude embarcar, ofereceu-se para ficar à disposição do que eu precisasse. Disse a ele que precisava comprar uma passagem para Buenos Aires para aquela noite, pois tinha de estar com a permissão da Aduana cedo da manhã do dia seguinte, quinta-feira, para poder pegar o navio lá. Ele ligou para a rodoviária de Punta, perguntou se havia passagem e, ao confirmarem que sim, disse-me que me levaria lá tão logo terminasse seu serviço ali. 

No caminho, ele foi me contando sobre alguns dos "moradores" daquele balneário. Disse que há atores de Hollywood, jogadores de futebol, mas que um dos mais ricos dali é um brasileiro, dono da marca Havaianas. Quando chegamos à rodoviária, deixei minha mala no carro dele e... me disseram que a Buquebus, empresa que faz a viagem para Buenos Aires, recém  tinha fechado seu guichê. Para comprar a passagem, tinha de ir ao shopping. Voltei ao carro e o senhor, de quem infelizmente não lembro o nome, disse: "Te levo lá". Fomos. Comprei. Minha viagem seria à meia-noite, até Colônia de Sacramento e depois, de balsa (e que balsa), até Buenos Aires, onde chegaria por volta das 8 da manhã, mesmo horário em que o navio chegaria lá.
Fim de tarde em Punta Del Este

Depois de tudo, o senhor este ainda me deixou na rodoviária. Despedimo-nos como bons amigos que naquela hora e meia fomos. O céu vermelho do sol recém posto merecia foto melhor que a que meu celular conseguia tirar. A essa altura, estava sem nenhum tostão no bolso. Tinha apenas um cartão de crédito. Precisava de um banho, repouso e comida. Fui à cata de um albergue que me tinham indicado.

No albergue, cujo dono era um rapaz que não passava dos 25, consegui por 10 dólares um banho quente e um quarto para descansar até a meia-noite. Tomei banho, troquei de roupa e, na hora de descansar, desisti: desci e fui beber. Toda essa confusão precisava ser afogada. 

No bar do albergue, pedi uma cuba-libre. Depois outra. Depois outra. Bati papo em inglês com um casal de canadenses e um californiano. Descobri que sabia mais inglês do que supunha. Tomei outra cuba-libre. E outra. Botei o celular para despertar - não podia correr o risco de perder também o ônibus. Quando o rum acabou, me deu sede de cerveja. Às 23:45 me despedi de todos, peguei mala e mochila e caminhei rapidinho para a rodoviária. 
Até cassino tinha nessa balsa.
E elevadores.

Só acordei em Colônia de Sacramento. Às 5:30 da manhã partia a balsa. De ressaca, não pude ver muito da viagem. Escolhi um canto e dormi quase até a hora de a balsa atracar.

Costá Mágica chegando num
ponto diferente do porto.
Olhei pela janela e vi, quase sem acreditar, o Costa Mágica com meu pai, a Maira e outros quatro mil e tantos passageiros, chegando no porto junto com o Buquebus.

Um pouco melhor do trago da noite anterior, na hora de desembarcar lembrei que não tinha tirado minha bagagem do ônibus para levá-la à balsa. E cadê meu Bukowski que me acompanhava a viagem toda? Falei com um funcionário do porto e ele me disse que se eu desci em Colônia, então minha mala estava segura, era só esperá-la na esteira. E lá estava ela mesmo. O Bukowski é que se perdeu (Valeu, amigo!). 

Sem dinheiro, com fome e com uma pequena dor de cabeça, corri puxando a mala umas seis quadras na chuva até o outro ponto do porto onde atracavam os navios de cruzeiro. Mas corri essas seis quadras pensando que teria de correr vinte, porque essa foi a informação (mais uma errada) que me deram. 

Um dia depois dos 80 anos,
meu pai e eu
Uma hora e meia depois, e depois de outras tantas desinformações, um alto-falante chamou meu nome, pedindo que me dirigisse ao balcão de informações. E foi ali que reencontrei a Maira. Dali, subi uma escada, cheguei na aduana do porto, consegui liberação e pude entrar no navio para, enfim, largar minha bagagem e conhecer a cabine onde, mais tarde, descansaria.

Esperando a pizza
no Caminito.
Já na entrada, encontrei meu pai e sua esposa. Ninguém de nós conseguiu evitar o choro e as risadas. E eles, que já nem me esperavam mais e estavam saindo do navio para passear por Buenos Aires, subiram até um restaurante comigo para que eu pudesse tomar um café-da-manhã.

Maira feliz no jantar, agora
com todos reunidos.
Daqui em diante nessa história, acabou-se o estresse. Já havia garantido minha entrada e nada mais seria problema. Saímos todos a passear pela capital argentina. Centro, Caminito, de táxi, a pé, de ônibus. A Maira comprou roupa, nós comemos pizza e eu não bebi um gole de álcool nesse dia, só quando escureceu: vinho para comemorar. 
Buenos Aires ao fundo, e nós no deck
mais alto do navio - 12º andar. 

No fim da tarde da quinta-feira, zarpamos - sim, me incluo! - de Buenos Aires em direção ao mar gaúcho para, depois, subirmos até Ilha Grande, RJ, onde chegaríamos três dias depois (três dias sem ver terra firme, só mar, por todos os lados).

De toda a viagem, Ilha Grande foi o lugar mais bonito em que pus os olhos. E é puramente simples, um vilarejo. Podia morar a vida inteira ali, ou morrer num ataque fulminante do coração. A felicidade seria a mesma.
Caranguejo entocado numa das fendas
da prisão/leprosário

Para quem não sabe, Ilha Grande teve uma prisão famosa, para onde foram muitos presos políticos, e um leprosário, ambos no mesmo lugar. Só não sei o que veio primeiro - acredito que o leprosário. De qualquer modo, a construção está em ruínas, com a floresta tomando conta. É o único lugar angustiante da ilha, mas ainda assim bonito.

Vista do caminho para o leprosário.
Uma das coisas incríveis dessa viagem é que descobri que meu pai gosta de ficar é no navio. Sei lá, o velho se diverte acho que no cassino Ele, poucas vezes, quis descer, mesmo em lugares onde não conhecia. Tivemos de convencê-lo a descer em Ilha Grande. Disse-nos que não tinha muito o que ver, que era só uma praia. Como já comentei, eu moraria ali a vida toda. Com meus livros, meus discos e minha mulher, sem dúvida nenhuma. Mas ele...

O ruim do navio é que ele não fica muito tempo nos lugares visitados, e fica-se muito tempo dentro dele. E mais uma vez tivemos de embarcar. Era domingo e, na segunda-feira, a viagem chegaria ao fim, desceríamos cedo no Rio de Janeiro. 

Restaurante onde, sempre antes de nos
servirem, os garçons faziam um show.
Antes de jantarmos, sempre nos reuníamos, todos ( Maira, eu, Gilmar, Magali, Bruno e Carla), na cabine do pai e da Nelsi. Ali, falávamos do nosso dia, mostrávamos a roupa com que iríamos ao restaurante e, mais importante, tomávamos cuba-libre de aperitivo, porque meu bom e querido pai tinha escondido (já que não era permitido) uma garrafa de rum trazida direto de Porto Alegre entre suas coisas. 

À noite, arrumamos as malas e as deixamos do lado de fora da cabine, para o camareiro despachá-las. 

"Copacabana recebe a visita
de Maira Dilli", devia ser a notícia.
De volta ao Rio, desembarcamos e, outra vez, deixamos as malas num guarda-volumes. Queríamos ver de novo a praia e fomos de ônibus para Copacabana. Lá caminhamos na areia, molhamos os pés no mar, tiramos fotos e fomos almoçar uma comida de verdade, o que não fizemos a viagem toda: feijão, arroz, bife, fritas e uma cerveja bem gelada de garrafa. Nesse pequeno restaurante de esquina onde fizemos nossa refeição, conhecemos um senhor norueguês de 75 anos, cujo nome é Neils (e, Neils, perdemos teu e-mail, mas se por um milagre leres isto, fica sabendo que foi um prazer todo o papo que tivemos). Conversamos em português, inglês e, quando não conseguíamos nos entender nem numa língua nem em outra, sorríamos e tudo se resolvia. 
No avião, de volta a PoA.

Aí chegou a hora de irmos ao aeroporto. Compromissos nos esperavam em Porto Alegre e em Canoas.

Passei dez dias sonhando com tudo que era tipo de navio e com perseguições. Acordei sempre rindo. Não sei se por causa do sonho ou pela Maira, que estava ali, do meu lado.




Outras fotos da viagem:

Igreja em Punta Del Este


Carro antigo em Punta




Vista de Botafogo
Ilhabela/SP, único lugar da viagem que não conheci.
Pôr-do-sol visto do deck do navio.
Banho de piscina.
Festa no navio, num fim de tarde.